ATREVIMENTO, CINISMO E DEBOCHE... SE NECESSÁRIO
por Henrique Amaral


Na metade dos anos 70, o movimento teatral do Recife era sacudido com as inovações do grupo Vivencial Diversiones, que tinha seu próprio espaço no Complexo Salgadinho. Nos últimos anos da mesma década, os grupos Hermilo Borba Filho, à frente Marcus Siqueira e Luiz Maurício Carvalheira, com sede num pequeno teatro no Varadouro, em Olinda, e o Teatro Universitário Boca Aberta (TUBA), formado por universitários, com a supervisão de João Denys, Helena Pedra, Fernando Limoeiro e o já citado Carvalheira, movimentavam uma forma de fazer teatro menos convencional que o encenado na metrópole. Outro grupo do período era o alegre e debochado Ponta de Rua, onde jornalistas e profissionais liberais sacudiam os comícios políticos com espetáculos divertidos e polêmicos, à frente Carlos Fraga, Morse Lyra Neto, Ana Farache e Samuel Costa.

Em 1984, esses grupos não existiam mais e o movimento local seguia a rotina do teatrão, mas os independentes iam ressurgindo, aos poucos, em bares concorridos como o Depois do Escuro, nas Graças, ou o Moreno Vídeo Bar, na divisa Derby- Boa Vista. Para uma festa no Depois do Escuro, criei o curto e atrevido “O Beijo da Serpente”, em que atuei ao lado de Vládmir Combre de Sena, sob a direção de Mozart Guerra. Na trama, um vampiro hipnotizava e perseguia sua obsessão, um frágil homem sem perspectivas. O público lotou a festa e aplaudiu a encenação e os proprietários pediram nova apresentação. Com a boa acolhida, e sob a batuta da Gruta Produções Artísticas (de Vládmir e de Celso Calheiros), “O Beijo da Serpente” ganhou uma temporada no projeto Encontro às 13, do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, no Teatro do Centro de Artes e ainda foi reapresentada no ano seguinte no Moreno Vídeo Bar.

Na mesma época, a agitadora cultural Paula Moraes gerenciava as atrações do bar Três por Quatro, que ficava na Rua das Fronteiras, no Derby. Paula criou um projeto artístico para as quartas e entre recitais poéticos, shows musicais e exposições, chamou os membros da Ilusionistas Corporação Artística, à frente Augusta Ferraz e Moisés Neto. No evento “Arte Livre” (1984), Marco Antonio Hanois pintava os corpos dos atores, eu e Ana Cláudia Vasconcelos, Moisés Neto era o político Johnny Glicerina, Manoel Constantino era um juiz, saído da encenação “A Noite dos Assassinos”, e Augusta Ferraz surgia como Fausto, saindo de dentro de um caixão, interpretando Goethe e Marinetti.

Em 1985, recriei o projeto de Paula no Moreno Vídeo Bar, e nas quartas, apresentávamos atrações diversas como a performance “O Rei da Vaia”, com Hanois e a emblemática Tuareg, talentosa atriz do período, o espetáculo em duas partes, “Dupla Face”, com o estreante George Meireles, o recital “Afago e Faca”, com Manoel Constantino, eu e Marcelo Pereira, hoje editor do Caderno C, do Jornal do Commercio. Marcelo ainda atuou em “Doméstica ou Economista?”, para as alunas de Economia Doméstica da Rural, e fez uma das vozes do poema dramático “O Assassinato do Tocador de Alaúde”, de Tawfik Az-Zayad, encenado no Moreno.

Foram várias as experiências realizadas em 1985, como o início do grupo Totem, na época ainda Trem Fantasma, à frente Fred Nascimento e Laudiene Veríssimo e que até hoje está (e experimenta) em cena. Naquele ano, Moisés Neto que estreara como autor com a temporada de “Verdades e Mentiras”, no Teatro Joaquim Cardozo, aceitara escrever e dirigir também para bares ou boates.

No ano seguinte, o exemplo mais bem acabado de um teatro alternativo levado a sério pelas casas noturnas foi a abertura de um espaço às segundas-feiras, no bar e restaurante Água de Beber, em Casa Forte. A casa acreditou na proposta dos artistas, todos eram bem pagos, as peças recebiam um tratamento visual melhor, uma boa divulgação na imprensa, belas fotos e a participação de atores mais acostumados com o teatrão. No Água de Beber, fazíamos temporadas das peças curtas, tínhamos iluminação, sonoplastia, figurinos, enfim, uma produção caprichada. Ali, textos meus como “Rival de Prata” (com as belas e competentes Valéria Loreto e Luciana Neves), “Cinza Solidão” (direção de Carlos Carvalho, com a veterana Magda Alencar no elenco) e “Brega-Chique & Camarão” (trabalho de atuação de Paulo Barros e Simone Figueiredo fazendo um casal calcado nos programas de humor da TV brasileira), de Moisés Neto, como “Evita-me à Cubana” , “Prazeres da Revolução” e “O Bolo” (amor e ódio, mídia e sucesso, e a interpretação de Moisés e Augusta Ferraz, numa encenação em que os tiros do crime eram ouvidos com um prazer indescritível pela platéia) , de Augusta Ferraz (“Anjo Vitimado”, baseado em Nietzsche), de Carlos Carvalho e Walmir Chagas (“Cor de Dell’ em Dell’”), Thomas Bakk (“Moral da História” e “Calmonstro”) e de Manoel Constantino (co-autor, comigo, de “Pós-Lavas do Vesúvio”) eram enfim valorizados.

Também em 1986, explorávamos boates como a Misty com uma temporada de treze semanas da comédia “Faustina” , adaptação do texto de Goethe feita por Moisés Neto, um recorde para a casa. No mesmo ano, o 1º Festival de Humor apresentava textos curtos nos palcos da cidade e o Circo Voador, do Rio, era montado no Recife, com espaço para performances, O movimento estava consolidado e assim continuou no ano seguinte, ano em que criei com mais sete atores, o grupo COOPERA (Cooperativa de Pesquisa da Linguagem Cênica), que lançou “As Moscas”, de Sartre, no Recife, numa leitura que durou 3 horas de duração, no Teatro Apolo, fez a performance de criação espontânea “As Tribos”, no Hall do Centro de Artes da UFPE, recitou Neruda com Manoel Constantino na Livro 7 e falou da cocaína em “A Morte de Rita Pop” (estréia de Heitor Dhalia como dramaturgo, em co-autoria comigo), encenada no bar Mirante, no Alto da Sé, em Olinda. Também em 87, Marco Hanois levou uma performance charmosa e de alto nível para o Teatro Barreto Júnior, nada mais nada menos que “Andy Warhol Está Morto”. Bombou no teatro e na festa subseqüente na Misty, que depois de uma da manhã já exibia em telão as imagens da peça-evento.

Em 1988, outros dois bares abriram portas para as peças, o De Vento em Popa, na Madalena, à frente o ator e bonequeiro Fábio Caio, e o Canto & Arte, na Torre, com a gerência de Rivaldo Casado (Maninho), que já atuava no grupo Ilusionistas.

Mais espetáculos curtos em temporadas nos espaços alternativos, como os de minha autoria “Pai, Filho e um Espírito Tão Santinho” e “Um Abacaxi no Meio de Tua Testa, Sujeita!”, o cínico e corrosivo humor de “Com a Víbora no Seio”, de Moisés Neto e a minha colaboração, “Fausto”, de Fernando Pessoa, com o ator Edgard Franco de Sá, que com sua formação superior em teatro no Conservatório Nacional de Lisboa e sua simpatia, entrou com tudo no movimento.

No De Vento em Popa, chamou a atenção os atores do grupo Coopera, Heitor Dhalia, Ana Paula Martins e Bete Duarte, numa mistura de estilos, com os figurinos de época doados pelo TAP e a música do “guerrilheiro musical” Ívano. O espetáculo tinha sido escrito e dirigido por mim, eu também atuava e produzia. Chamava-se “A Máscara da Assepsia” e as belas fotos de Heitor Cunha mostravam na imprensa os personagens Carlitos, Drácula, a Bela Adormecida e a Megera Domada em fotos sugestivas. Bombou. Segundo o Suplemento Cultural do Estado, 400 pessoas lutavam por um lugarzinho para ver a performance.

No ano seguinte, mais espaços, como o Metafísico, o Sanatório Geral e a boate New Hits (antes, Show Bizz), os três no bairro das Graças, lotado nos fins de semana. Anos depois, os moradores do bairro lutaram muito para a volta da paz no lugar, tão agitado entre 1984/1989.

Em 1990, Moisés ainda estava em cena e Amaral despedia-se do bucólico Metafísico. Em 91, chegou a vez do Sushi Clube, na Ilha do Retiro, e da boate Arara’s, em Boa Viagem. No fim do ano, o Porção Mágica nos deslocou para a Boa Vista e funcionou até o fim de 1993. Ali, para os eventos “Madonna, a Festa” e “The Night of Stars”, ambas com DJs e teatro, a rua José de Alencar foi fechada pelo Detran no quarteirão em que ficava o bar, para conforto da rapaziada, que lotou as duas noites.

O performático Gê Domingues subia à cena em 1994, no poético “Reflexões Contemporâneas”, de minha autoria, ao lado do estreante Júlio César (mais tarde, Gilka Brexó), no já decadente Depois do Escuro. Parecia o fim, mas não era.

As experiências no período 1995/2004 continuaram/continuam, com menos fôlego talvez, surgiram outros grupos e autores, mas o que as pessoas chamavam de happening ou performance, parece já ter dado seu recado, além de ter formado platéia para o teatro convencional.

Desafio às convenções, linguagem atrevida, personagens polêmicos: esses esquetes chamavam a atenção de quem estava na noite bebendo, beliscando ou jantando, para a diversidade de estilos. Os personagens saíam da História, como Einstein ou Marat, da literatura, como Drácula, da música, do cinema, da TV, dialogavam com figuras do Recife, contemporâneas, urbanas, e esse embate cultural deixava pasma a platéia. Acrescente Shakespeare, Artaud, coragem, ousadia e tínhamos um teatro alternativo forte, com uma linguagem pulsante digna do Recife. E o teatrão não deu as costas para esses experimentos, que ocuparam os teatros da cidade em apresentações especiais, às vezes convidadas pela própria administração do teatro ou pelos órgãos de cultura.

Estamos em 2004, as experiências continuam aqui e ali, mas a história desses grupos, desses esquetes, bares, boates, não começou sequer a ser contada. Quem sabe um dia?

HENRIQUE AMARAL, autor deste artigo, é também radialista e criou ano passado o programa “Abrindo a Cabeça” ,ao lado de Rivaldo Casado, que continua em 2004 e é apresentado na rádio comunitária Cidadania, que abrange de Boa Viagem a Porto de Galinhas. Em 2003 também idealizou e participou do evento “Criador e Criaturas” sobre a obra de Moisés Neto, para o projeto “Quartas Literárias”, coordenado pela atriz Silvana Menezes, no Centro de Cultura Luiz Freire; escreveu e atuou na peça “Camarão, Vinho, Carol e Aninha” para a boate Nova Era, na Boa Vista, e movimentou o bar Savoy com o evento “Boemia, Vídeo e Poesia”. Já no ano corrente, interpretou poemas e monólogos em participações em shows em bares como o Mustang e a Nova Portuguesa , e continua a luta para narrar em vídeo esses últimos 20 anos de teatro alternativo no Recife, com o documentário “Era Uma Vez em Pernambuco”. Em 2002, foi lançado em um canal de TV a cabo, o vídeo “Cidade (in) Ver$o$ - Fragmentos do Delírio Cotidiano”, de meia hora, em que faz um rico advogado que vai à falência total, à mendicância. A direção é de Edgar Arruda, em produção de Alexandra Pötter, e o vídeo será apresentado este ano na Espanha pelo diretor. No elenco, ainda Érickson Luna, Cristiano Cavendish, Aretha Ferreira, Juliana Guedes Falcão, Seu Rainha e o Maracatu Estrela Brilhante.





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