Nelson Rodrigues e o teatro
                                       
por Moisés Neto

Nelson Rodrigues nasceu no Recife, em 1912, e morreu no Rio de Janeiro, em 1980. Foi com a família para a então capital federal com sete anos de idade. Ainda adolescente começou a exercer o jornalismo, profissão de seu pai, vivendo em uma cidade que, metáfora do Brasil, crescia e se urbanizava rapidamente. O país deixava de ser predominantemente agrícola e se industrializava de modo vertiginoso em algumas regiões. Os padrões de comportamento mudavam numa velocidade até então desconhecida. O Brasil tornava-se o país do futebol, do jornalismo de massa e precisava de um novo teatro para espelhá-lo, para além da comédia de costumes, dos dramalhões e do alegre teatro musicado que herdara do século XIX.

De certo modo, à parte algumas iniciativas isoladas, foi Nelson Rodrigues quem deu início a esse novo teatro. A representação de Vestido De Noiva, em 1943, numa montagem dirigida por Ziembinski, diretor polonês refugiado da Segunda Guerra Mundial no Brasil, é considerada o marco zero do nosso modernismo teatral.

Depois da estréia dessa peça, acompanhada pelo autor com apreensão até o final do primeiro ato, seguiram-se outras 16, em 30 anos de produção contínua, até a última A serpente, de 1978. Não poucas vezes teve problemas com a censura, pois suas peças eram consideradas ousadas demais para a época, tanto pela abordagem de temas polêmicos como pelo uso de uma linguagem expressionista que exacerbava imagens e situações extremas.

Além do teatro, Nelson Rodrigues destacou-se no jornalismo como cronista e comentarista esportivo; e também como romancista, escrevendo, sob o pseudônimo de Suzana Flag ou com o próprio nome, obras tidas como sensacionalistas, sendo as mais importantes Meu destino é pecar, de 1944, a Asfalto Selvagem, de 1959.

A produção teatral mais importante de Nelson Rodrigues se situa entre Vestido de Noiva, de 1943 – um ano após sua estréia, em 1942, com A Mulher Sem Pecado – e 1965, ano da estréia de Toda Nudez Será Castigada.

Neste período, o Brasil saiu da ditadura do Estado Novo, fez uma fugaz experiência democrática de 19 anos e entrou em outro regime autoritário, o da ditadura de 1964. Os Estados Unidos lutaram na Guerra da Coréia e depois entraram na Guerra do Vietnã. Houve uma revolução popular mal sucedida na Bolívia, em 1952, e uma vitoriosa em Cuba, em 1959. Em 1954 o presidente Getúlio Vargas se suicidou e em 1958 o Brasil ganhou pela primeira vez a Copa do Mundo de futebol. Dois anos depois, Brasília era inaugurada e substituía o eterno Rio de Janeiro de Nelson como capital federal. A bossa nova revolucionou a música brasileira, depois a tropicália, já a partir de 1966.

Quer dizer: quando Nelson Rodrigues começou sua vida de intelectual e escritor, o Brasil era o país do futuro. Quando chegou ao apogeu de sua criatividade, o futuro chegava de modo vertiginoso, nem sempre do modo desejado. No ano de sua morte, 1980, o futuro era um problema, o que nós, das gerações posteriores herdamos.

Em sua carreira conheceu de tudo: sucesso imediato, censura, indiferença da crítica, até mesmo vaias, como na estréia de Perdoa-me Por Me Traíres, em 1957. A crítica fez aproximações do teatro de Nelson Rodrigues com o teatro norte-americano, sobretudo o de Eugene O’Neill, e com o teatro expressionista alemão, como o de Frank Wedekind. Mas o teatro de Nelson era sempre temperado pelo escracho, o deboche, a ironia, a invectiva e até mesmo o ataque pessoal, tão caracteristicamente nacionais. Nelson misturou tempos em mitos, como em Senhora dos Afogados, onde fundem-se citações de Shakespeare com o mito grego de Narciso e o nacional de Moema, nome de uma das personagens da peça e da índia que, apaixonada por Diogo de Albuquerque, o Caramuru, nada atrás de seu navio até afogar-se, imortalizada no poema de Santa Rita Durão, Caramuru.

Todas as peças de Nelson Rodrigues parecem emergir de um mesmo núcleo, onde se misturam os temas da virgindade, do ciúme, do incesto, do impulso à traição, do nascimento, da morte, da insegurança em tempo de transformação, da fraqueza e da canalhice humanas, tudo situado num clima sempre farsesco, porque a paisagem é a de um tempo desprovido de grandes paixões que não sejam a da posse e da ascensão social e em que a busca de todos é de certa forma a venalidade ou o preço de todos os sentimentos.

Nesse quadro, vale ressaltar o papel primordial que Nelson atribui às mulheres e à força delas, numa sociedade de tradição patriarcal e patrícia como a nossa. Pode-se dizer que em grande parte a “tragédia nacional” que Nelson Rodrigues desenha está contida no destino de suas mulheres, sempre à beira de uma grande transformação redentora, mas sempre retidas ou contidas em seu salto e condenadas a viver a impossibilidade.

Em seu teatro, Nelson Rodrigues temperou o exercício do realismo cru com o da fantasia desabrida, num resultado sempre provocante. Valorizou ao mesmo tempo o coloquial da linguagem e a liberdade da imaginação cênica. Enfrentou seus infernos particulares: tendo apoiado o regime de 1964, viu-se na contingência de depois lutar pela libertação de seu filho, feito prisioneiro político. A tudo enfrentou com a coragem e a resignação dos grandes criadores.


NELSON RODRIGUES E UMA TRAGÉDIA CARIOCA EM 3 ATOS:

O Beijo no Asfalto (1960) começa apresentando o perfil do delegado Cunha, que deu um chute na barriga de uma grávida e matou o feto. É ele quem vai logo a seguir se envolver com um simulacro de escândalo que envolve um inocente (Arandir, marido da Selminha e cunhado de Dália) que teria beijado, sob o olhar do sogro, outro homem, vítima de atropelamento de ônibus, que morreu no asfalto.

A partir deste plot, Nelson esbanja seu linguajar que titubeia entre o puritano e o cafajeste. O jornalista Amado manipula a mídia e negocia com a polícia. Nelson, como jornalista, sabia como estas coisas aconteciam. Fernando Torres (marido da atriz Fernanda Montenegro), para quem o texto foi escrito em 1961, fez mudanças na peça, que permaneceram. A sintaxe / a pontuação do texto é extremamente teatral. Alguns termos / situações podem até parecer datados, mas o que temos é um gosto pela vida que passa pelo existencialismo sartreano (coisificante) e atinge o folhetim sangrento e sensual.

Amado (!) vampiriza o beijo que testemunhou e convida o delegado para o pacto de sangue que venderá mais jornais: “Homem beijando homem”.

Aprígio é o sogro que no final, saberemos, é apaixonado pelo genro. Amor não declarado.

Nelson, antes, permeia as falas com marcas líricas, como “Dália (cunhada de Arandir) entra. Adolescente cuja graça leve parece esconder uma alma profunda”. O texto tem falas como “mas papai, olha: Hoje eu fiz ensopadinho de abóbora. A criada está de folga e eu fui pra cozinha, papai!” (Selminha). O diminutivo do nome já é propositalmente provocante: “Desde o meu namoro o senhor nunca chamou Arandir (marido dela) pelo nome”. Ela tem um ano de casada e faz sexo com o marido quase todo dia. Diz que está grávida e não acredita que o marido seja homossexual. O autor nos sugere que tudo pode ser verdade num pesadelo que lembra O Processo de Kafka.

O pai diz que um ano é pouco para se conhecer alguém: “pouquíssimo”, ao que ela retruca “confio mais em Arandir (que nome!) do que em mim mesma”, que fala! O pai envenena: “Digamos que seu marido não fosse como você pensa” e ela olha para a irmã e retruca: "Dália disse que se eu morresse ela se casaria com o Arandir”. A irmã se “defende” (logo ela que vai querer se “entregar” ao cunhado que já a vira nua, no final): “Eu estava brincando, papai!”

Arandir é descrito como “uma figura jovem, de uma sofrida simpatia que faz pensar num coração atormentado e puro”. Entre a polícia, imprensa e o sogro “pervertido”, ele sucumbe. (Termina assassinado por este de forma dramática; cômica, tragicômica). O delegado pergunta: “É casado e não usa nada no dedo, por quê?” “Caiu no ralo do banheiro”, ele responde. O delegado: “Se aparecesse uma mulher boa, nua, qual seria a tua reação?” (silêncio).

Arandir, que beijou na boca a vítima do atropelamento na Praça da Bandeira, Rio de Janeiro (onde quase todas as obras do recifense Nelson transcorrem), diz que foi culpa do motorista. Mas todas querem o escândalo do tal “beijo”.

MORBIDEZ - Dália fala do casamento da irmã: “No teu casamento eu pensei tanto na morte da mamãe”. O cunhado a tinha como um anjo, mas ele tinha desejo carnal por ele. Há algo em Arandir que nos lembra Blanche Dubois, personagem central de Um bonde chamado desejo, peça de Tennessee Williams: “Vi um rapaz (...) ele perdeu o equilíbrio (...) atropelado não grita (...) me abaixei, peguei a cabeça dele e...”. A teia em torno deste trabalhador sensível o envolve e sufoca. Ele não tem saída: a vizinha fofoqueira, os colegas de repartição, o preconceito, a dubiedade, a mentira, tudo o arrasta para o desespero e frustração: “Toda a cidade estava ali e viu quando eu...”.
A vizinha, D. Matilde é uma espécie de coro, representa o juízo do povo: “Não foi o primeiro beijo nem foi a primeira vez!” “O sujeito caiu de braços, rente ao meio-fio. Teu marido foi lá e virou o rapaz. E deu o beijo na boca”, diz Aprígio, o sogro.

Selminha passa pelo vexame de ter de ficar nua e sofrer “abuso” num pseudo-interrogatório, o marido foge. A viúva da vítima atropelada, uma adúltera, é pressionada pelo repórter a mentir e dizer que Arandir já tomou banho com o marido dela. A cilada está armada e a vítima, Arandir, sucumbe, é abatida num quarto de hotel por uma sociedade preconceituosa (hipócrita) manipuladora dos fatos, tendenciosa e cruel com os fracos, que finge seguir a ideologia cristã, mas é brutal e selvagem.

Selminha sente nojo do beijo do marido depois de tudo que aconteceu: “A senhora nunca ouviu falar em gilete?” (referência ao bissexualismo). Ela grita: “Seus indecentes!” Ao que o delegado Cunha retruca: “Olha que lhe quebro os cornos!” e o repórter, Amado, diz: “Tira a roupa! Fica nua. Tira tudo!”

“O senhor não gosta de Selminha como pai. Gosta como homem”, diz Dália. Insinuações assim são comuns em Nelson. A espiral se afunila e as humilhações se acumulam. A razão e a loucura, verdade e mentira se confundem: “Querem que eu duvide de mim mesmo!”, repete Arandir: “Eu não beijaria a boca de um homem que não estivesse morrendo (...) É lindo. Eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! Eu não me arrependo!”

A cunhada na última cena diz que apesar da irmã não querer mais o beijo de Arandir, ela o quer. E ele: “Você é uma criança. Eu amo Selminha. Eu ia pedir a Selminha para morrer comigo. Mas ela não veio”. E Dália: “Eu morreria”. Ela acredita que Arandir tinha um caso com o morto, ele a expulsa do quartinho de hotel onde foi se esconder.

O pai (Aprígio) dela chega, ela foge. O sogro entra, confessa a paixão pelo genro, acusa-o de ser amante do atropelado e o mata: “Eu jurei a mim mesmo que só diria teu nome ao teu cadáver (...) O meu ódio é amor”. Atira: “Arandir! Arandir! Arandir!” (cai a luz, em resistência, sobre o cadáver de Arandir. Trevas)

Ruy Castro, em seu livro O Anjo Pornográfico, fala sobre a peça de Nélson:

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Protesto em nome da família brasileira!', gritou um expectador exaltado, em cena aberta de ‘‘Beijo no asfalto”. Todos se voltaram para ele: os outros espectadores, o elenco, os contra-regras. Era como se aquele homem de gravata, sobraçando uma honesta pasta, representasse ali, na platéia do Teatro Ginástico, a típica célula familiar brasileira de 1961, composta de marido, mulher, amante, um casal de filhos, a sogra, a cunhada, o gato e o papagaio. Alguém ainda tentou reagir: ‘‘Cala a boca!”. Mas outras vozes se juntaram à do homem de pasta: ‘‘Isto é um acinte! Onde está a polícia que não fecha esta indecência?”

O motivo da revolta era uma fala de Selminha, interpretada por Fernanda Montenegro, quando ela tentava defender a virilidade de seu marido Arandir (Oswaldo Loureiro) contra as sórdidas insinuações do delegado Cunha (Ítalo Rossi) de que Arandir seria homossexual:

– Ou o senhor não entende quê? Eu conheço muitas que é uma vez por semana, duas e, até, quinze em quinze dias. Mas meu marido todo dia! Todo dia! Todo dia! (Num berro selvagem.) Meu marido é homem! Homem!’’

A insurreição da platéia só não foi adiante porque maridos em quantidade apreciável, talvez pouco assíduos em suas obrigações domésticas, tomaram suas mulheres pelo braço e retiraram-se masculinamente do teatro. Uma dessas mulheres protestou:

‘‘Eu não quero ir, Aparício! Quero ficar!’’

Mas foi arrastada do mesmo jeito.

Fernanda Montenegro levara mais de um ano para extrair uma peça de Nelson para a sua companhia, o “Teatro dos sete’’. Procurara-o pela primeira vez em fins de 1959 e ele lhe prometera a peça. Passaram-se semanas e nada de peça. Fernanda começou a telefonar-lhe em ‘‘Última Hora’’. Nas primeiras vezes, Nelson atendeu e deu uma desculpa:

‘‘Muito trabalho, meu anjo. Trabalho pra chuchu!’’

Não era exagero: Nelson estava escrevendo ‘‘Asfalto selvagem’’ e ‘‘A vida como ela é...’’ diariamente na ‘‘Última Hora’’, uma coluna também diária no “Jornal dos Sports’’ e, além disso, já tinha uma peça pronta, que era ‘‘Boca de Ouro”. Nas vezes seguintes, Nelson vinha ao telefone, falava ‘‘Alô?” e, quando percebia que era Fernanda, dizia com sua voz inconfundível:

“Mas aqui não é o Nelson, meu coração. É o Nestor.

Fernanda parou de ligar. Em fins de 1960, foi Nelson que a procurou, a ela e a seu marido Fernando Tôrres, para entregar-lhes “Beijo no asfalto”.

Escrevera-a em 21 dias, inspirado na história de um velho em “O Globo”: Pereira Rego, que fora atropelado por um “arrasta-sandália” (um tipo de ônibus antigo) em frente ao “Tabuleiro da Baiana”, no largo da Carioca. Ao ver-se no chão, perto de morrer, Pereira Rego pedira um beijo a uma pessoa que se debruçara para socorrê-lo. Só que essa pessoa era uma jovem.

Nelson fez com que o atropelado na praça da Bandeira pedisse o beijo a um homem – Arandir. Um repórter, Amado Ribeiro (sempre esse homem fatal), de “Última Hora”, presencia o atropelamento e o beijo. Anota nome e endereço do atropelado e do outro, e vai a um delegado no desvie para propor-lhe a sua reabilitação: iriam criar um caso em cima daquele beijo no asfalto. Pederastia na via pública – um escândalo para vender jornal e parar a cidade. O repórter e o delegado forjam testemunhas e transformam o que forjam testemunhas e transformam o que fora um beijo de piedade num caso amoroso e sinistro entre dois homens.

“Última Hora” estampa o caso em manchetes e em toda a cidade só se fala no “beijo no asfalto”. Arandir, o rapaz que beijara, começa a ser perseguido no trabalho e se demite; seu sogro, que nunca gostara dele como genro, intriga-o com sua mulher; e até esta começa a duvidar. Quando a história ameaça esfriar, Amado Ribeiro (interpretado por Sérgio Britto) transforma o caso num crime e reúne indícios para provar que Arandir empurrara o sujeito para debaixo do lotação. É puro Kafka, o Kafka de “O processo”. Uma cidade inteira acredita no homossexualismo de Arandir. E é esmagador porque, agora, até sua mulher passou a acreditar. Ele é o único que sabe a verdade — uma voz solitária contra a unanimidade. No desfecho, descobre-se que homossexual era seu sogro (Mário Lago), e o que pareciam ser ciúmes da filha eram, na verdade, ciúmes do genro, por quem o sogro era apaixonado em segredo. O velho o mata e se abraça a ele chorando.

Sábato Magaldi discordou desse final:

“Nelson, você queria fazer drama grego ou espanhol e acabou fazendo drama mexicano”, ele disse.

“E quem garante a você que o drama mexicano é menos drama do que o drama grego ou espanhol?”, retrucou Nelson.

O “Teatro dos sete” já encenara Bernard Shaw e Georges Feydeau, mas seria com “Beijo no asfalto” que Fernando Tôrres, Fernanda Montenegro e Sérgio Britto se realizariam como companhia. Isso apesar dos percalços sofridos durante a temporada: “Beijo no asfalto” tinha um mês e meio em cartaz quando Jânio renunciou a 25 de agosto, poucas semanas depois de proibir os desfiles de misses em maio. O país parou por quase dez dias, a um passo da guerra civil não pelas misses, claro. Quando as coisas se acalmaram, a peça foi retomada, mudou-se para o teatro da Maison de France e viajou depois para o Sul. Foram ao todo sete meses em cartaz, o maior sucesso de Nelson, e poderia ter sido muito maior se Jânio não tivesse tomado aquele pileque.

Mas não foi um sucesso tranqüilo. Quando a peça estava na Maison, Nelson ia todas as noites para o teatro e ficava no saguão, de guarda-chuva no braço, com seu filho Joffre, tomando satisfações de quem saía indignado no meio do espetáculo.

Corria atrás do sujeito e o interpelava:

“Mas vem cá. Me diz uma coisa, O que o ofendeu nessa peça?”

Às vezes o cidadão engrossava e Nelson engrossava de volta. Mas quase sempre conseguia convencê-lo a voltar para ver o resto.

O próprio Nelson tivera de ser convencido pelos Fernandos – Tôrres e Montenegro – a tornar o texto um pouco mais ofensivo, salpicando-o com alguns palavrões. Foi quando muitos se deram conta de que, até então, nenhuma peça de Nelson contivera um único palavrão!

“Mas a minha musa sereníssima, a minha Duse, vai dizer palavrões?”, protestou Nelson.
A contragosto, Nelson enxertou alguns nomes feios no texto, como um confeiteiro aplica cerejas podres numa torta. Quer saber quais eram? “Chupão”, “gilete” e “barca da Cantareira” – e nenhum deles a ser ditos por Fernanda, mas pelo repórter e pelo delegado, dois boçais. Com ou sem aquelas palavras, no entanto, “Beijo no asfalto” teria o mesmo impacto.

“Beijo no asfalto” provocou a saída de Nelson de “Última Hora”. Não porque Amado Ribeiro fosse personagem da peça, repetindo o repórter amoral e sem escrúpulos que Nelson já descrevera em “Asfalto selvagem”. Mas porque as referências a “Última Hora” não contribuíam muito para a imagem do vespertino. Falava-se até de Samuel Wainer, na cena em que Selminha diz para seu pai:

“– Como é que um jornal, papai! E o senhor que defendia tanto o Samuel Wainer! Como é que um jornal publica tanta mentira!”

Para que Nelson incluísse essa fala numa peça enquanto empregado de Samuel Wainer e do jornal, só poderia haver uma explicação: excesso de independência – ou de inocência. Os Fernandos acharam melhor se precaver. Gostariam de uma carta de Amado Ribeiro e outra de Samuel Wainer, autorizando-os a usar seus nomes e o de “Última Hora”. Nelson achava desnecessário – já escrevera sobre “Últimas Hora” e na própria “Última Hora’. Mas Fernando Tôrres insistiu.

Com Amado Ribeiro não houve problema. Assistiu a um ensaio, vibrou, foi ao palco abraçar Sérgio Britto e repetiu seu bordão: “Eu sou pior! Eu sou pior!”. Produziu ali mesmo uma declaração e assinou. Já Samuel Wainer não podia dar a carta, estava fora do Brasil. Um diretor interino forneceu-a, liberando o uso do título. O espetáculo entrou em cartaz, houve a renúncia de Jânio, aconteceu o alarido que mobilizou “Última Hora” e o país e, quando a peça foi para a Maison, Samuel chamou Nelson e mandou-o tirar o jornal da história.

Nelson pediu aos Fernandos que atendessem Samuel. Batava trocar o nome, inventar outro. Mas Fernando Tôrres não quis ceder. A peça já estava em cartaz, não ficaria bem, seria o suicídio moral do espetáculo. E havia outro argumento:

“Temos uma carta”, disse Fernando Tôrres.
“E se eu for demitido?”, perguntou Nelson.
“Ora, Nelson, qual o jornal que não gostaria de ter você?”, respondeu Fernanda Montenegro.

Nelson cedeu, mas a situação pesou para ele dentro da “Última Hora”. Colegas viraram-lhe o rosto. Nem o seu teatro parecia agradar-lhe mais. E, pensando bem, já não precisavam dele, porque a esquerda tinha agora os seus próprios autores: Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Viana Filho, Augusto Boal, para não falar em Dias Gomes. Nelson tornara-se purê de ontem. A idéia do desemprego provocava cambalhotas em sua úlcera. (“Manchete Esportiva” já não existia). Mas ele próprio se convenceu de que seus dias em “Última Hora” haviam terminado.

Pediu demissão a Samuel, aceita sem restrições. Estava deixando um jornal em que trabalhara desde o primeiro número e no qual publicara, durante dez anos, cerca de duas mil histórias de “A vida como ela é...”, num astronômico total de dez mil laudas – trezentas mil linhas!


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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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