James Joyce, Camille Paglia, Bob Dylan, Sábato Magaldi, Bárbara Heliodora, João Denys e Gil Vicente
                                       
por Moisés Neto

Nos dias que precederam minhas férias tive oportunidade de ler três livros que me deixaram bem legal: a tradução que a professora Bernardina da Silveira Pinheiro fez da polêmica obra do irlandês James Joyce, Ulisses, o novo livro de Camille Paglia Break, Blow, Burn e Crônicas de Bob Dylan. Gostaria também de destacar fatos culturais que me marcaram em 2005.

A primeira versão para português da obra de Joyce foi feita por Antônio Houaiss em 1966 e causou sensação, no bom e mau sentido. Em 2005, uma aposentada da UFRJ resolveu dar sua versão para esse livro que influenciou meio mundo de gente, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. A “trama” de Ulisses é simples. Num fluxo de consciência, o livro nos apresenta Leopold Bloom, 28 anos, filho de pai judeu suicida; a sensual Molly, 34 anos, sua mulher, soprano, também de família judia, o professor Stephen Dedalus (que já “veio” de outro romance de Joyce – Retrato de um artista quando jovem), sem grana e indeciso, que mora numa velha fortaleza (a “torre do martelo” na cidade de Dublin, onde tudo se passa ao longo das 24 horas do dia 15 de junho. Malachi “Buck” Mulligan, que morava com Dedalus, estuda medicina, gosta de arte.

O livro é composto por 18 “partes”:
1ª: Dedalus e Buck discutem arte.
2ª: Stephen vai dar aula em Dublin e está envolvido pela história da Irlanda, destaque para o famoso “monólogo interior”, especialidade de Joyce.
3º: Stephen, à beira-mar, medita sobre Aristóteles, Blake, Paris, o que vê e o que não enxerga, mas pressente.
4ª: Conhecemos o Leopold preparando o breakfast para ele, sua esposa Molly e o Gato. Sai: vai comprar rim de porco. Retorna, recebe carta da filha, Milly, sai para o enterro de um amigo.
5ª: Bloom vai à igreja e à farmácia.
6ª: Ele está no cemitério onde se fala de política irlandesa.
7ª: Nosso herói segue até a redação de um jornal e daí para a biblioteca.
8ª: Chega em um bar.
9ª: Buck ridiculariza nosso Leopold.
10ª: Padre Conmee é peça-chave de pequenas histórias que se entrecruzam.
11ª: Bloom pensa em Molly.
12ª: Ele entra numa briga.
13ª: Curiosidades sobre dublinenses, Leopold flerta com uma mulher e se masturba.
14ª: Visita uma senhora na maternidade e discute medicina.
15ª Encontra Stephen num bordel à meia-noite discutindo teologia e é expulso.
16ª: Eles vão para um abrigo.
17ª: Caminham até a casa de Bloom (ele convidou Stephen para passar a noite lá), Stephen sai e ele vai para cama.
18ª: Aqui é a vez do monólogo interior de Molly, que encerra o romance.
Não há dúvida: Bernardina tornou a narrativa (mais de 700 páginas) mais leve.

Quanto ao novo livro de Camille Paglia, ela analisa 43 poemas que vão de Shakespeare a Joni Mitchell, falando sobre solidão, epifania, alienação, percepção, perversão, humanismo e mediocridade. E tenta salvar a arte da teoria. O que vejo neste livro é uma personalidade que se impõe ao assunto criticado (?). Ela é irreverente, perversa, adora literatura e dona de um texto muito próprio. Ela diz que o poeta não pode ser classificado pelo “conjunto” da obra e sim por detalhes. Dá vontade de decorar os poemas depois de ler Camille. Ela personaliza sua leitura. Amar é quase uma religião para ela. não quer ser futurista, nem política (?) e entrecruza as várias expressões artísticas, apontando para múltiplas percepções. Ao visitar Sylvia Plath, em “Daddy”, ela eletriza o leitor e na minha opinião reconstrói (em menor proporção) o poema ao descontruí-lo contrapondo imagens e palavras.

O livro de Bob Dylan, Crônicas - Volume Um, é cru e um tanto quanto cubista. Ele nos sacode numa viagem pelos anos 60 sob a ótica de um boy disposto a tudo para mostrar sua poesia cantada, ambiciosa e pouco complacente. Dylan é incrédulo e estranho. Sai contando sua vida pessoal e dá para notar que inventa muito sobre ela (ninguém lembraria tantos detalhes depois de tanto tempo assim).

O tom é coloquial e a sintaxe bem particular. Às vezes o discurso cheira à maconha. Há uma espécie auto-congratulação pairando sobre quase todas as páginas diante do nosso olhar (incrédulo?).

Robert Zimmerman, judeu, tem o dom de contar histórias, vide suas letras enormes, e não faria por menos ao contar a sua própria. É um jogo de cabra-cega no meio de um 4 de julho muito doido. Isto é apenas o volume 1.

O autor, diretor e professor potiguar João Denys, autor do consagrado texto Deus Danado, lançou no ano de 2005 o livro “Flores d´América”, texto que ganhou o prêmio Hermilo Borba Filho de dramaturgia no Recife. O tema é o cangaço, a mulher sertaneja, as rezadeiras.

A protagonista América, é uma mulher destemida e ousada. Viu os filhos morrendo e lutou pela sobrevivência das gêmeas Soledade e Das Dores.

Ela explora as duas em um jogo de orações, rendas e exercício de poder.

O sertão da costureira América é peculiar e dribla o caricatural. Já o catolicismo distorcido faz dueto com o de Denys. O autor é de Currais Novos (RN). A narrativa inspira-se na linguagem popular e tem um tom de Cordel.

Outra surpresa agradável de 2005 foi reencontrar a crítica teatral carioca Bárbara Heliodora e conhecer pessoalmente o mineiro (Belo Horizonte) Sábato Magaldi aqui no Recife. Ele criticou FHC e LULA no tocante ao financiamento imperfeito à cultura: “O teatro não sobreviveu sem subsídio. Por culpa do governo vivemos o atraso. O governo teme os efeitos, de um conhecimento mais sólido”. Professor emérito da USP e ex-crítico do jornal O Estado de São Paulo (por 30 anos), aos 78 anos ainda mostra poder de fogo: “Os artistas maduros se cansaram da profissão e os novos têm poucas perspectivas. Concordo com Bárbara: peça com 2 atores já é superprodução. Há mais monólogos. A situação do palco está precária. Só resta a televisão, o teatro nasceu subvencionado na Grécia. Este é o espelho. Na França e Itália há subsídios públicos. Nos EUA grandes fundações se encarregam de ajudá-lo. Temos que construir mais teatro”, disse-nos Sábato emocionado. "Estimular escolas como a Escola de Arte Dramática – EAD – de São Paulo, fundada por Alfredo Mesquita, posteriormente incorporada à USP. Oferecer mais livros especializados, elevar o nível das montagens e das espectadores. O crítico não é autônomo. Depende da empresa em que trabalha, mas tive liberdade no Diário Carioca, no Estadão e no JORNAL DA TARDE (SP)”. Nosso encontro se deu em um Seminário de Crítica Teatral, no Teatro Capiba, SESC Casa Amarela, de 15 a 19 de agosto de 2005.

Bárbara foi implacável: “Não uso estruturalismo, nem semiótica, nem metalinguagem: apenas crítica de teatro. Aos 81 anos, há 15 escrevendo para o Globo, adoro a cena. Assisto a cerca de cem espetáculos por ano, a maior parte de má qualidade, por amor assisto, mas é assustador", fulmina.

E entrega: "Todos são críticos. Os profissionais têm que oferecer respaldo em poucas linhas e no calor da hora. O crítico tem que ser bem informado, não é questão de um curso de poucos meses. Há que freqüentar muito os teatros (o bom e o mau). Curtir os grandes espetáculos. O espectador só concorda com o crítico quando este concorda com ele. Não é só o gosto ou não gosto, nem perseguir ninguém.

Ela acha que "tanto faz ver uma peça na estréia ou no último dia, ela tem que estar pronta, se a bilheteria estiver funcionando, de outro modo é desrespeito ao público. O crítico identifica qualidades, é um expectador melhor preparado, exigente. Platéias melhores também ajudam. As regras do jogo para apreciar melhor um trabalho, como no futebol. Um grupo estreante não deveria montar HAMLET ou ÉDIPO, como músicos improvisando a MISSA SOLENE, de BEETHOVEN ou a Paixão de São Mateus, de Bach."

E sintetizou: "
Ter jeito para teatro não é tudo: tem que dominar a arte e o instrumento. Quem tem que sentir é a platéia, ao citar compete ter imaginação e domínio de si o suficiente para transmitir. O teatro sempre esteve em crise, mas sempre se inovou, inventou e renovou”.

Sábato reclamou: “Os dramaturgos discutem pouco a questão do Brasil de hoje. Não vejo novela, ela não substitui o teatro. O besteirol se acabou, mas a comédia se refaz, mesmo com esta situação de política cultural que parece um túmulo. Devemos usar os recursos da boa dramaturgia. Críticos como MACKSEN LUIZ (RJ), são bem recebidos, assim como Mariângela Alves de Lima. Mas o espaço deles é reduzido na mídia”.

Bárbara reforçou: “Comédia de costumes refletem o Brasil de hoje longe dos acontecimentos mais graves. Há quantidade e não qualidade. Nunca tantos brasileiros foram encenados. Os temas das novelas são superficiais. O teatro tem que ser mais penetrante. A linha mestra da dramaturgia brasileira é a comédia".

Ambos concordaram num ponto: “Ninguém substituiu Nélson Rodrigues.”

“Se a crítica não tem um vínculo com os criadores, ela fica no ar, não tem real concreção. Conheci Oswald de Andrade em Belo Horizonte, gosto dos textos dele, mas o Nelson Rodrigues é a unanimidade nacional. Jorge de Andrade e Plínio Marcos foram influenciados por ele. Augusto Boal termina fazendo propaganda reacionária quando diz que todo teatro é político. Acho que a verdadeira política, engajada, seja descobrir o que é o ser humano”,
arrematou Magaldi.

Quanto aos anos de chumbo e a apatia que se seguiu, Bárbara depôs: “Não creio que só se escreva bem em crises. Arte é reflexo do mundo. Falta de dinheiro não é desculpa para um mau espetáculo. Confesso minha ignorância a respeito do teatro no Nordeste, mas Ariano Suassuna, é um dos maiores autores do Brasil. Gosto de Silveira Sampaio e Mauro Rasi e do ator Marco Nanini especialmente neste projeto chamado Circo de Rins e fígados”.

Touché!

Fiquei impressionado com o pintor pernambucano Gil Vicente, que inaugurou em dezembro de 2005 no Recife sua exposição Inimigos. Nas ruas, na mesma época, os jovens incendiavam ônibus em protestos contra os abusivos aumentos de tarifas. Gil dava sua impressão sobre este conturbado início de milênio, com sua arte, ali, contra os políticos / personalidades públicas nocivos. Arte de Protesto? Ele retrata, em preto-e-branco o seu desgosto em quase-assassinatos, ressignificando a política não, trazendo-a para o primeiro plano, sim. Não apenas ótimos desenhos, mas, arte engajada e atrevida de qualidade. JARBAS VASCONCELOS, LULA, ELISABETH I, o Papa são expostos às armas, ao desejo de justiça para todos.

Que pena que nem todos têm a força de Gil Vicente!

Abração para todos e feliz 2006!

Moisés Neto

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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