Paulo Coelho, o Demônio e a Senhorita Prym

                                        por Moisés Neto.

"O Demônio e a Senhorita Prym" é o título do novo livro do mago e escritor carioca Paulo Coelho que assim encerra sua trilogia intitulada “E no sétimo dia...”, composta por “Na Margem do Rio Piedra eu sentei e chorei” (94) e “Veronika Decide Morrer” (98). Estes livros têm em comum o fato de abordarem uma semana na vida de seus personagens “normais” que subitamente se Vêem confrontados com o amor,a morte e o poder: “Sempre acreditei que as profundas transformações,tanto no ser humano como na sociedade,ocorrem em períodos de tempo reduzido” ,diz o autor.

É um romance que traz todas as características dos anteriores que já atraíram mais ou menos 100 milhões de leitores ao redor do mundo.

Publicada no final do ano 2000,a brochura trazia na capa de sua primeira edição brasileira (Editora Objetiva- RJ), uma estranha fotografia azulada, representando casas numa ladeira enluarada. Só numa janela brilhava uma intensa luz.

Na epígrafe (citação inicial) lemos: “Certo homem de posição perguntou-lhe: `Bom Mestre,que farei para herdar a vida eterna?´ Respondeu-lhe Jesus:`Porque me chamas de bom?Ninguém é bom,senão um só que é Deus´” .Lucas,18;18-19 .

Paulo Coelho é Cristão-místico e propõe-se a misturar religião e ficção. Um dos personagens desta narrativa é um padre.Aos personagens de Paulo Coelho falta um pouco de profundidade psicológica, a qual é prontamente substituída por um inevitável sentimento de aventura e novas descobertas,este padre por exemplo fica a pensar no trecho bíblico citado acima e não consegue chegar a uma conclusão terá sua existência modificada com a chegada do demônio na sua paróquia.

As primeiras linhas nos remetem aos tempos da “antiga Pérsia e fala de um Deus que pariu o Bem e o Mal e fez com que o homem vivesse em eterno conflito (...) penso que a maioria sabe do que estou falando (... )a serpente,o fruto proibido” . Porém a narrativa transcorre na aldeia de Viscos, que o leitor não sabe exatamente onde fica. A definição do tempo perde-se entre a época dos alquimistas e o final do século vinte, numa civilização de origem céltica.

A maior parte dos personagens não tem nome,são apenas modelos,arquétipos.Por exemplo “o prefeito”. A própria aldeia é um arquétipo.”Isolada do mundo”, é um microcosmo.

O enredo é simples: Berta tem fama de bruxa e é viúva do caçador Santiago,vive conversando com o fantasma do marido e vigiando Viscos,aldeia com 281 habitantes sem crianças ou jovens e condenada a se acabar. O demônio chega e hospeda-se na cidade na forma de um rico industrial ,fabricante de armas, com o falso nome de Carlos,que vem disposto a provar que ninguém é bom e oferece onze barras de ouro àquele que cometer um assassinato dentro de uma semana.

Chantal Prym,a jovem empregada do único hotel/restaurante/bar/loja do lugar ,que já fez sexo com muitos homens na ilusão de subir na vida e sair daquele lugar decadente, pensa em ganhar o ouro .Faz um pacto com o diabo e a vítima seria Berta. A cidade (cujos líderes são a dona do hotel,o prefeito,a mulher do prefeito,o ferreiro e o padre,um sujeito bom que foi corrompido pelo mundo cruel) concorda.

Amarram a velha Berta num monólito celta,mas têm uma repentina crise de consciência e dispensam a anciã já dopada e pronta para o que teria sido um estrondoso fuzilamento.

Quais os truques literários de Paulo Coelho

Para montar a história do “estrangeiro” (que perdeu a família num seqüestro) e da “empregada”, o “mestre” não vacila em se amparar em lendas árabes,chinesas,artes marciais japonesas e outras antigas tradições. Lança sua prece habitual no início do livro (“Oh Maria concebida sem pecado,rogai por nós que recorremos a Vós.Amém”) e ao “Senhor Todo Poderoso”.

Lá está a “última geração” da aldeia de Viscos: agricultores e pastores à mercê do misterioso estrangeiro e da romântica e desiludida moça pobre, a senhorita Prym do título,filha de pai desconhecido e cuja mãe morreu no parto, a menina foi criada pela avó quase miserável,que ao morrer deixou-a sozinha do mundo.

“Sou um homem que já faz algum tempo busca determinada verdade;terminei descobrindo na teoria, mas jamais a coloquei em prática(...)descobri que se tivermos oportunidade de cair em tentação,terminaremos por cair(...) todos estão dispostos a fazer o mal(...) assisti a uma peça de Durrenmatt(...)então concebi meu próprio jogo(...) quero que infrinjam o mandamento`Não Matarás´”,diz Carlos.

São Savir,foi morador de Viscos,converteu o pior bandido da aldeia,o árabe Ahab- que se transformou assim no reformador do lugar tornando a aldeia num lugar “previsível,organizado e confiável”. Mandou construir uma forca, que nunca foi usada e posteriormente foi substituída por uma cruz. Esta é a história da aldeia, que já tinha sido refúgio de marginais.
Prym tem o verniz da marca Paulo Coelho: “duas coisas impedem uma pessoa de realizar seus sonhos:achar que eles são impossíveis ou através de uma súbita virada no destino vê-los transformados em algo possível quando menos se espera”. Ela enfrenta o Mal e o Bem afinal “a verdadeira bondade não existe- nem na terra nem no céu do Deus Todo Poderoso que semeia sofrimento a torto e a direito,só para que passemos nossa vida inteira pedindo para que nos livre do mal” e todos desempenham o papel de alma caridosa por terem “medo de tomar atitudes na vida(...)é mais fácil ouvir uma ofensa e não revidar do que ter coragem de meter-se num combate com alguém mais forte” .

Curtam essas máximas do romance:

-O destino de cada um está traçado.
-Não é a luz que você quer de volta:é a certeza de que não existe nada além das trevas.
-A história de um homem é a história de toda a humanidade.
-O que governa o mundo é o terror.
-O mundo nunca existiu sem armas.
-A melhor maneira de você enfraquecer seu adversário é fazê-lo acreditar que você está ao lado dele.
-O homem precisa daquilo que em si há de pior, para alcançar o que nele existe de melhor.
-Existem dois tipos de idiotas:os que deixam de fazer porque receberam uma ameaça, e os que vão fazer alguma coisa porque estão sendo ameaçados.
-Eis Senhor meus pecados para Contigo e os teus pecados para comigo (...) fui injusto Contigo e tu foste injusto comigo (...) Tu irás esquecer minhas faltas e eu as Tuas.
-Faz parte do ser humano aceitar que temos uma natureza inferior.
-Durante séculos, a Igreja tem sido acusada de lutas injustas,mas na verdade,tudo que fizemos foi sobreviver às ameaças.

O narrador freqüentemente mistura seu discurso com o dos personagens e há também uma certa metalinguagem em algumas passagens,onde se pressupõe um leitor. Quando Carlos ,o demônio, conversa com a senhorita Prym por exemplo: “Os leitores enfrentando todas as dificuldades que enfrentam, sendo freqüentemente injustiçados pela vida e pelos outros,tendo que lutar por escola e comida- torceriam para que você fugisse” com o ouro.

O “estrangeiro” (Carlos) ocupa parágrafos enormes(coisa rara nos romances de Coelho) explicando a potência das balas e armas que fabrica: “Sou um homem que caminha pela terra tendo um demônio ao seu lado;para afastá-lo,ou aceita-lo de vez,preciso responder a algumas perguntas”. O demônio habita o lado esquerdo do seu cérebro(o lado responsável pela lógica e o raciocínio) e tem a aparência de “um jovem de vinte anos ,com calças pretas,camisa azul e boina verde,colocada displicentemente sobre os cabelos negros” que diz: “é inútil tentar descobrir porque eu existo(...)sou a maneira que Deus encontrou de castigar-se por ter decidido num momento de distração criar o Universo”.

Reencarnação, castigo, olhares de assassinos sem crimes,dor medo,vergonha:O ser humano é essencialmente mal?Afinal,de onde ele veio? Enquanto Prym fica pensando, o seu demônio “recém-chegado” ainda tinha total controle sobre a moça,que parecia indecisa na hora de agir, e implacável na hora de culpar os outros . Não consegue ser boa como desejaria,nem má como precisa e no fundo deseja ser igual aos outros, que não são condenados porque “Jesus deixou-se sacrificar para salvar a humanidade”. Confusa Prym adormece e seu anjo conversa com sua alma: “Faça o que seu coração mandar e Deus ficará contente”. Esta é a mensagem final do romance.


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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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