Breve perfil Barthesiano

Considerações sobre "O Prazer do Texto", "Aula" e "S/Z", por Moisés Neto

Uma pergunta que Barthes se fez em “O Prazer do Texto” (Ed.Perspectiva.SP,2002) foi: “Quem é o leitor do texto quando ele se entrega ao prazer?”. E sua resposta sugere que houve uma comunhão com o prazer do autor que, ao escrever, deu prova de “desejar” o leitor, numa espécie de kama-sutra da linguagem (p.11). Nem a língua canônica (escola, cultura) nem a morte da linguagem. Esta “comunhão” (leitor/autor) se dá na ousadia de cortar “a corda” que os suspende no “momento do gozo”(p.12).
Barthes explica que se deve desconstruir a narrativa e mesmo assim deixar a história legível e que o texto não tombe sob a boa consciência (e a má fé) da paródia.Sugere também que todo relato é uma encenação do pai (ausência/proibição)(p.16). Discute nossa avidez ou fastio quando “pulamos” certas passagens “aborrecidas” de um livro. Um autor não poderia prevê- las.

O francês lança polêmica: o que é prazer em literatura está ligado à direita (p.30), vem da cultura; é confortável(p.20); é hedonismo (p.30), range (p.47). E o que seria gozo/fruição? Uma perversão(p.62), está ligado à esquerda, desconforta, faz vacilar as bases do leitor(p.21), desponta(p.47), tem métodos(p.30). “O prazer é apenas um gozo enfraquecido, aceito, desviado” (p.27). Gozo e Prazer se completam.

O escritor não é ativo nem o leitor passivo. Entra-se numa perversão (p.25): “O gozo é visto das margens do prazer”(p.3). Para o texto só é gratuito destruí-lo, não escreve-lo (p.32). “Estamos presos na linguagem(..) falares se friccionam, lutam entre si”(p.36). escapa-se dos socioletos(fala social) liquidando a metalinguagem(p.39). O prazer do texto não tem ideologia (p.40), a luta social é a subversão de toda ideologia (p 41). Precisamos de entusiasmo, de uma linguagem sem o seu imaginário. O escritor é um joker (p 44) Ler Proust é prazer não gozo (p 49).

As instituições reforçam as ideologias, achatam as massas(p 50), fingem não imitar e reforçam a alienação política. “escrevo para não ficar louco”, disse Bataille (p59) Quem poderia dizer “Escrevo para não ter medo?”. Todo enunciado corre o risco de ser ideológico.

São “pequenos histéricos” (p 63) os leitores que exibem “gosto fantasmático” pela realidade, pelo cotidiano, dizia Barthes e o autor não deve aparecer no próprio texto como biografia direta (p 66). Ele também gostava de aforismos e paradoxos: “O sonho é uma anedota indelicada feita com sentimentos muito civilizados”. Sugere que como uma árvore, o texto é, a todo instante, uma coisa nova (p 71). Texto quer dizer tecido-o sujeito se desfaz nele como “uma aranha se dissolve nas secreções construtivas de sua teia”(p 74-75).

Já em sua famosa “Aula” (ed.Cultrix.SP,2001), do dia 7/1/77, iniciando a cadeira de Semiologia Literária no Colégio de França (traduzida e comentada pela prof.Leyla Perrone-Moisés), Barthes se pergunta porque um sujeito “incerto” como ele , que até sobre semiótica (que foi constituída por ele e outros) tinha dúvidas, fora chamado a lecionar naquela casa, onde Michellet, Valéry, Merlau-Ponty e Foucault (a quem agradece por tê-lo apresentado à Assembléia dos Professores para titular da Cadeira), já ensinaram. É, segundo Leyla, retórica pura o que Barthes apresenta neste discurso/aula: polidez(elogios e agradecimentos), modéstia, elegância(falsas perguntas) e exibição de saber (citações). Sua voz é “suave” nas passagens mais provocantes.”Serena”, quando afirma que “a língua é simplesmente fascista” (p 56). Ele subverte o discurso “ na e pela linguagem (pp51-52). Diz “eis o que fiz, isto não é para ser refeito(...) é só prova de que é fazível” (p 52)..Ele foi acusado de “intelectual decadente” (p 54) no Brasil. Questionou: “Aonde ir se a doxa passasse para a esquerda?"(p 59). Alguns vêem aí muito “individualismo”, uma “perversão”(p59), mas para Leyla ele fez um “trabalho sutil de desativação dos discursos da arrogância”(p 61). Isso não depende da pessoa civil, do engajamento político. “A forma não pode ser avaliada em termos ideológicos”(p61). A linguagem não é “dócil e transparente" (p 62). “Transformar o mundo é transformar a linguagem” (p.58). “Politicamente um escritor só pode ser um anarquista”, arrisca Leyla (p 63).” Neste momento de suave apocalipse(...) numa paisagem livre de deserança” (p 42).

Os enunciados de Barthes são perfeitamente gramaticais e seu estilo é clásssico(...) seu gênero é reconhecido: o ensaio(...) entretanto sob este aparente compromisso trama-se (...) a trapaça(p 67), através da abundância de pontuação(...) neologismo e etimologismo(pp 70-71), quando por exemplo joga com a raiz de “saber” e “sabor”. Sua escritura substuitui a literatura (p 71). Ele usa a palavra “jogo” como sendo uma atividade sem finalidade outra senão o próprio jogo: “onde a língua tenta escapar a seu próprio poder, a sua servidão" (p 83). Leyla conclui:”Nossas línguas ocidentais estão cansadas de fazer sentido(...) chegamos a um engarrafamento semântico, em que os sentidos se engalfinham (p 85). Precisamos tomar fôlego, “dar um tempo” (p 87).

Quanto a ensinar, o mestre aconselha: quanto mais livre do poder, melhor: “Nós, intelectuais(...nossa verdadeira guerra é contra os poderes(...) sou obrigado a escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são proibidos(...) a marcar a minha relação com o tu(...)o suspense afetivo ou social me é recusado”(p 13). “O fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (p 14). Na língua servidão e poder se confundem(...) não pode haver liberdade senão fora da linguagem(...) só resta trapacear com a língua(...) uma revolução permanente(p 16).

Se o “excesso de socialismo” ou a “barbárie” destruíssem tudo e só ficasse a literatura, Barthes diz que aí reencontraríamos a síntese dos conhecimentos (p 18). Ao mesmo tempo, afirma: “o real não é representável(...) só demonstrável(..) literatura é inadequação da linguagem ao real(pp 22-23).”O poder se apossa do gozo(...) para manipula-lo e fazer dele gregário” (do bando)(p 27). A lingüística está empazinada. “O semiólogo seria um artista(...) joga com signos como um logro consciente (...) pinta mais do que perscruta"(p 40). “A semiologia usa o signo como ficção” (p 41).

Barthes pede um ensino sem opressão e clama pelo “máximo de sabor possível". E é em busca deste “sabor” e do discurso além do masculino e feminino, e que não se dirija somente ao “tu”, quando busca romper o limite entre o prazer e o gozo que Barthes dá outra “aula” ao analisar Sarrasine, novela de Balzac(1830), no livro S/Z (ed.Nova Fronteira. RJ, 1992), fruto de um seminário (1968-1969) na Ecole Pratique de Hautes Etudes.. Ele subverte o estruturalismo: explica o texto passo a passo, frase por frase, palavra por palavra.Inventa recortes, numa nova prática de crítica literária. Divide a novela de 35 páginas em 561 “unidades de leitura”. Uma aventura que se completa com 93 “intervenções teóricas”(nascidas dos próprios comentários das “unidades”. Barthes tenta solapar o muro entre crítica e literatura, crítico e escritor. Ele busca no texto a capacidade de produzir sentidos múltiplos e renováveis que mudam de leitura para leitura. Quer acabar com “os modelos prévios” de leitura. Procura incitar a imaginação do leitor em sua diferença: “Não quero que meu trabalho vire modelo”, insiste.

A novela trata da paixão do escultor Sarrasine pelo cantor(a) Zambinella. Barthes apressa-se em explicar que “a diferença é o que os textos têm em comum”, portanto ciência, ideologia (moral, ética, estética, política) nada disso seria instrumento adequado de trabalho para o texto. Barthes quer reescreve-lo, não quer ser simples consumidor e critica o divórcio “impiedoso” (p 38) entre o fabricante e o usuário do texto. Podemos penetrar o texto por diversas entradas, nenhuma seria a principal, é, um “lance de dados” que decide o sentido, nunca há um “todo “ no texto.. Num texto ideal as redes são múltiplas, vão além do jogo de empurra conotação/ denotação (p 41). “A denotação é a última das conotações” (p43). A denotação é uma “velha encarregada de representar a inocência coletiva da linguagem" (p 43).

O “eu” que se aproxima do texto, já é ele mesmo uma pluralidade de outros textos(...) a subjetividade(...) obstrui o texto(...) na objetividade o gesto castrador é mais forte(...) ler é encontrar sentidos(...) nomeá-los”(p 44)É um trabalho metonímico, sempre levará a outros nomes. “Tudo significa sem cessar e várias vezes (p45).
Barthes não quer a divisão do texto em grandes blocos(como a escola pede), quer “esquadrinhar”, renovar as entradas (p 46). “Estrelar o texto , ao invés de compacta-lo”. Secciona-o em fragmentos curtos (lexias), estas pequenas “unidades de leitura” possuem “ora poucas palavras, ora algumas frases”(será uma questão de comodidade) .Recorta o texto como um adivinho, observa a migração de sentidos, “o afloramento dos códigos” (p 47), quebra-o e interrompe-o em total desrespeito por suas divisões naturais. “Explicações e digressões podem instalar-se no centro do suspense, e até separar o verbo do complemento, o nome do seu predicativo(...) maltrata-o(...) corta-lhe a palavra”(p48).

É a liberdade barthesiana de “ler um texto como se já tivesse sido lido(...) uma releitura(...) como criança, velhos e professores fazem(...) apenas ela é capaz de salvar o texto de uma repetição(...) reencontrar um tempo mítico, sem antes nem depois”( p 49). "Não uma crítica e sim uma “matéria semântica(...) comentário baseado na afirmação do plural” (p 48).




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